quinta-feira, 5 de agosto de 2021

O Trem em MAR DE ESPANHA, na belíssima crônica "Ô trem bão, sô..." de Manoel Franco e desenhos de Nandu Rangel.

 

A estação e o trem em Mar de Espanha, na arte de Nandu Rangel.


Ô trem bão, sô...

Manoel Franco


Bléim… bléim...bléim…

Piuiiiiiiiiiiií…. Puiuiiiiiiiiiiiií…. Shsssss… chac…. choc… chac… choc…

Partia o trem, com destino a Pequeri. Era a hora de devolver o telégrafo ao seu Donatilio, pois era preciso avisar a Pequeri da partida do trem.

Alguns lenços agitavam um adeus ao sabor do vento, e algumas lágrimas furtivas escondiam-se como se fosse por causa da fuligem e não de uma saudade antecipada.

Os moleques corriam atrás da composição – agora, já com poucos vagões-, esperando uma distração do seu Pedro ou de Raimundo, para pular na escadinha do último vagão e pegar uma carona até a curva, pouco antes da Garganta. Ali, o trem seguia mais devagar por causa da subida, o que permitia a eles saltar com segurança e fugir antes que o condutor os pegasse.

Dali pra frente, o trem acelerava a marcha, com o foguista alimentando com vontade a caldeira enquanto olhava com atenção os marcadores de pressão do vapor.

Piuiiiiií … u-uúuuu… café com pão… café com pão... café com pão… bolacha não…

O trem seguia soltando fumaças e fagulhas no ar, enquanto os passageiros ficavam mais atentos para não queimar o terno de linho, ou evitar que as mulheres tivessem o vestido danificado.

O cobrador vinha com sua maquininha de picotar as passagens com seu clec - clec enfadonho. E o trem seguia, agora, atravessando com forte ruído e vibração a ponte de ferro. Depois, viriam as estações de Estevão Pinto e Uricana, antes da baldeação em Pequeri. Uma viagem de cerca de 25 km, em pouco mais de 1 hora.

Sob o olhar atento de seu Donatilio, eu voltava ao meu aprendizado no telégrafo - isolado com uma folha de papel, para não transmitir a mensagem: dadada/… da/didadi/di/dada/... didadadi/dida/didadi/da/didi/didida/ …

Já com meus 11 anos de idade, meu pai entendeu que eu deveria aprender uma profissão, por isso me confiara ao seu amigo Donatilio, para o aprendizado de telegrafia na estação, depois das aulas no grupo escolar.

Pela janela da estação, eu observava as chegadas e saídas do trem. Ouvia os ruídos e os movimentos dos passageiros e o carregamento dos fardos de compras do comércio. Mais a frente, ouvia o abastecimento das caldeiras na caixa d'água e a celebrada reversão do trem, no viradouro. Esse era um acontecimento que agitava a garotada, e eu não poderia perder. A hora de virar o trem era de grande algazarra. Apesar do controle dos adultos, a molecada participava na marra da operação: a locomotiva entrava no Viradouro e todos a empurravam, da esquerda para a direita, até atingir a linha da variante. Dali, o maquinista faria a manobra até reatar a locomotiva à composição.

Quando o trem chegava à estação, havia sempre um mundão de gente a esperar. Por ali, chegavam as boas e as más notícias trazidas na mala do correio postal ou nos fardos de jornais. Chegavam as mercadorias das lojas: vestidos, sedas, tafetás, linho e brim. Chegavam as mercadorias dos armazéns e as esperanças de tantos que as aguardavam. Chegavam o pai, a mãe, os irmãos, o tio e também aquele amor que voltava depois de uma longa ausência.

Horas antes do horário da chegada ou saída do trem, já se ouviam os ruídos de plein-plein dos latões de leite vazios que retornavam da cooperativa ou o cacarejar das galinhas e o grunhir dos porcos em seus gaiolões. Em certos dias, de envio do mármore, era possível ouvir o coro ritmado de ô... ô... ô... dos operários, empurrando os blocos de mármore para os vagões plataforma, com suas alavancas.

Nos sábados, dominava o burburinho de vozes nos guichês de passagens e o entra e sai de passageiros, enquanto no fundo, ouvia-se a voz de Tamaduro:

–Maleiro… maleiro… eu levo a mala patrão… é minha Quati, sai fora….

E eu respondia pelo telégrafo: - Ô trem bão, sô:

dadadadi/... da/didadi/di/dada/... dadididi/didadida/dadada/… dadadididada/... dididi/dadadadi/...



A estação e o trem em Mar de Espanha, na arte de Nandu Rangel.



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